20050328

Avó,
lembrei-me agora que já não a visito há muito. É natural, e no entanto surgiu-me com estranheza. Na verdade temo-nos visto as poucas vezes do costume, mas já desde há algum tempo que nos encontramos cá em casa, nos almoços sempre conturbados, pontuados pela alegria animadora do seu neto mais novo.
Apertou então uma saudade de entrar na sua rua com o coração na garganta - eu tinha sempre medo que fosse demasiado inclinada para o carro aguentar! - descer ao largo e assistir com algum assombro às manobras milimétricas do pai para conseguir estacionar. Na minha memória, está sempre vento quando saio do carro... Coisas da beira-mar? Também não era costume irmos aí em Julho ou Agosto, não que eu me lembre. E a pergunta do costume: "é esquerdo ou direito?". Ainda não sei. Às vezes tinha a janela aberta e diziamos-lhe olá de cá de fora. Ainda ouço a sua reacção, aquela "oh" tão característico! Já dentro da casa lembro-me de achar a televisão maravilhosa, grande e incrivelmente encaixada naquele móvel, mesmo à medida. E havia ainda aquela taça em miniatura de cristal, com uma colherzinha, que gostava de fazer rodar, rodar, rodar até a mãe ralhar, não fosse partir-se. Mas do que eu gostava mais era da colecção de caixinhas, aqueles baús todos, em ponto pequeno mas cheio de pormenores numa mistura de cores vivas, que eu invariavelmente abria uma por uma, mesmo sabendo de antemão que estavam tão vazias quanto podiam estar. A memória mais querida que guardo daí é a de dar bolachas ao cão da vizinha. Aquele misto de medo e vontade de conseguir. Lembro-me de subir para a cadeira de plástico para conseguir ver por cima do muro, de tentar atirar a bolacha maria suficientemente longe para o cão conseguir apanhar e do receio da minha mãe de que eu pudesse debruçar-me demais. E obviamente rapinava algumas bolachas para mim! Muitas ficavam por ali perdidas entre os malmequeres e as bananeiras daquele jardim absurdo e caótico da casa ao lado.
Ainda o que me causa mais alegria é constatar todos estes momentos felizes, apesar de todos os desentendimentos e discórdias, que mesmo nunca passando por mim não deixaram de se meter entre nós e criar uma distância, como que para lembrar que tudo está interligado numa rede imprevisível de causas de consequências.

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